segunda-feira, 4 de junho de 2012

A reificação.


                                                                        
- Nós atiramos o passado ao abismo... – repetia para ele mesmo enquanto imaginava consigo mesmo a imagem de um gigantesco vale de sombras no qual ele encontrava-se a poucos metros da beirada.

- Mas nunca nos inclinamos para ver se ele está bem morto. – concluiu calmamente, desenhando mentalmente cada pedaço daquela vasta escuridão.

Fazia uma noite bem quente, daquelas que o indivíduo – para usar as palavras de Cazuza – mata ou morre. Ele estava sentado em uma velha cadeira de madeira posicionada embaixo da janela que se abria do lado oposto à porta. O cômodo não era muito grande, o que agravava a sensação de um calor causticante que parecia penetrar os ossos e entranhar-se nas veias do sujeito que ali habitava. Havia também um estranho odor no ar, muito provavelmente resultado de uma combinação infalível entre os seguidos dias sem as visitas ao chuveiro e da faxineira naquele pequeno e fétido cubículo que o jovem chamava de casa.

Quantos dias faziam mesmo? Aquela ligação não saia de sua cabeça. Desde então não saia mais de casa – só sendo um homem de muita coragem para se engraçar nas ruas depois de tudo aquilo -, vivia das visitas esporádicas de amigos e parentes que lhe traziam comida, bebida e um pouco de bondade. A cada nova pessoa que vinha visitá-lo, a comparação era inevitável: seu corpo e sua alma, não necessariamente nessa ordem, cada vez mais definhavam dentro daquele quarto pequeno como uma cela, fedorento como um aterro sanitário e quente como o inferno.

Pensava consigo mesmo que era muito cruel anunciarem oficialmente, através de um telefonema que vinha diretamente do departamento de estado, pra onde o mandariam dentro de um mês. Era uma ironia que eles te avisassem de antemão. Quase dava pra sorrir, pensando que talvez tivesse uma chance de escapar do duro destino que lhe aguardava dali a três semanas. Não fosse o telos algo inevitável, não estivesse ele sendo vigiado vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, seria possível esboçar um leve risinho. Ficava meio sem jeito de ligar para os velhos companheiros, afinal, não queria comprometer ninguém. O que mais lhe doía mesmo eram aquelas visitinhas rápidas, às escondidas, que alguns amigos mais corajosos realizavam.

- Por que vocês continuam vindo aqui? – perguntava para o amigo, num tom que misturava súplica e revolta – Estou com a porra dos dias contados de uma forma ou de outra. De que adianta essa merda de pão? E essa geleia de morango? Caralho, vocês não veem que eu vou morrer, porra? – dizia concluindo o argumento, que quase sempre era o mesmo independente de quem fosse o seu interlocutor. A resposta dos amigos também não variava muito, na verdade, o que se pode dizer para alguém com os dias contados?

- Talvez você consiga se dar bem lá, entrar pra algum grupo de serviços especiais. Ouvi dizer que quem fica na cozinha ou na faxina costuma ser poupado dos trabalhos mais duros e até mesmo dos interrogatórios. Não se desespere! – afirmavam os companheiros categoricamente, com um olhar que para ele mais parecia uma ofensa explícita do que um consolo amigável.

- Claro, e apodrecer lá pelo resto da minha vida. Limpando o chão ou então cozinhando sopa de batata. Nós todos sabemos bem que todo e qualquer processo é irreversível, você acha uma boa perspectiva viver reificado pelo resto da vida, fazendo um trabalho de robô? – eram os únicos momentos nessa última semana em que o seu tom de voz se levantava e que seu rosto recuperava um pouco de sua cor, o que lembrava a ele mesmo e aos amigos que ali jazia um homem vivo.

- E esse aviso de um mês antes de eles virem me pegar, isso é quase uma ostentação! É como se eles te dessem a esperança de que entre o dia da ligação e o trigésimo dia você fosse livre pra tentar fugir, mas qualquer imbecil sabe que é impossível alterar o processo. Uma vez que a Aletheia lança sua luz em nós, está tudo acabado. – falava tudo com certa mecanicidade que parece nunca abandonar aqueles indivíduos que foram os melhores alunos nos tempos de escola. Essa era uma das primeiras coisas que as crianças aprendiam nas suas lições sobre cidadania, que suas próprias vidas eram pequenos processos que não poderiam existir fora de outros quatro grandes processos da vida (Kant, Hegel, Strauss, More). Cada um desses grandes processos é orientado por um telos diferente que são respectivamente: o esclarecimento, espírito, estrutura e utopia; e todos esses são ligados ao maior processo de todos, a Aletheia. Por sua vez, essa é a grande mestra da vida a quem todos devem seguir e respeitar. Os que não respeitassem essa clara hierarquia, fatalmente acabariam na mesma situação que nosso nobre companheiro. Repetia, com os olhos mareados, a famosa frase dos tempos de escola que todos os alunos deveriam decorar, convencido de que aquilo era de fato o sentido mesmo da vida dos homens e que, por não ter sido o da sua, sua punição era justa:

- Nada para além da Aletheia, a grande mestra da vida. Essa vida é uma simples sombra que passa, é uma história que já está dada, cheia de ruído e de furor, mas que nada significa.

De fato, para ele, não havia mais significado algum. 

R.C

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