segunda-feira, 28 de maio de 2012

O coma.


- Ainda há chance?

- Pouco provável – afirmava o médico com o mesmo olhar indiferente de sempre, que bem lhe servia tanto para as desgraças como pros bons momentos.

- Então é isso?

- Desculpe, mas nós fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Eu sinto muito, mas é pouco provável que ele acorde... – algumas outras palavras vieram na sequência, mas o homem que estava em pé ao lado do leito não prestava mais atenção ao discurso. Nesse momento já não lhe interessava mais nada que o médico tinha pra dizer. Conseguiu recuperar-se a tempo de ver o doutor despedir-se com um leve tapa em suas costas e deixar o quarto com aquele mesmo olhar indiferente.

- Agora somos só nós dois, eu sabia que você não ia conseguir fugir disso a vida toda – falou em voz baixa observando todos os tubos e máquinas que agora pareciam ser uma extensão de um corpo robótico. Doía bastante pensar que aquilo na cama, num coma profundo a mais de dois meses, era o seu pai. Nem ele merecia um destino desses. Mesmo nunca tendo sido a melhor das pessoas, ele certamente não merecia ter a alma aprisionada naquela escuridão imensa e profunda. Ele nunca havia feito questão de ser muito “humano” mesmo, mas a imagem dele deitado naquela cama, ligado aos tubos e às máquinas era a descrição mais cruel daquilo a que toda escola de Frankfurt chamou de reificação.

Subitamente a expressão do homem ao lado da cama mudou. Ele havia lembrado o que precisava fazer antes que fosse tarde demais, afinal, por quanto tempo alguém será capaz de aguentar imerso na mais profunda escuridão? O que fora tristeza até dois minutos antes, dava espaço agora a uma profunda resignação. Falava para si mesmo: - Nós dois precisamos disso – agora bastava encontrar a melhor forma de abordar aquele assunto delicado com o homem que definhava na cama.

- Você sempre teve medo disso, né? – a pergunta era feita num tom de indiferença tão perfeito que daria inveja ao médico, caso ele estivesse lá – Você nunca quis realmente estar com ninguém, não é? Eu gostaria de saber como é viver como se nada fosse maior do que nós mesmos, é uma pena você não poder tirar esse tubo da sua boca pra me falar como é, ou melhor, como foi. Pensando bem, foi um castigo bem cruel deixarem uma pessoa que sempre se sentiu livre pra fugir de todas as responsabilidades, presa dentro do próprio corpo. Parece que existe limite pra tudo, né? – nesse momento a expressão do homem assumia um ar de confiança e as palavras pareciam estar fluindo mais facilmente do que no começo, agora era só uma questão de tempo para chegarem aonde queria.

– Às vezes eu fico pensando comigo se algum dia da sua vida solitária você foi feliz, quer dizer, o que eu fico pensando é se alguém é tão autossuficiente; não, não acho que essa seja a palavra correta, alguém se “baste tanto” que consiga ser feliz, nem por um segundo que seja, sozinho. Você só era capaz de ver o lado ruim das relações entre as pessoas, e o pior é que não era nem o lado ruim pros dois envolvidos, mas pra você, Você, Você, VOCÊ! – as últimas palavras foram pronunciadas num tom de voz um pouco mais agudo que o normal, sua face estava levemente rosada, o que deixava transparecer um nervosismo evidente.

- Talvez devêssemos ter tido essa conversa antes, talvez não. Não sei se você me ouviria, não sei se me ouve. Tudo o que eu sei é que eu precisava te dizer tudo isso. Que você perdeu muito não se envolvendo comigo, com todos nós, homens e mulheres ávidos por amar e sermos amados. Vou sentir sua falta, sem dúvida, mas tenho certeza de que isso não será muito diferente do que tem sido. Todo esse tempo, enquanto você era livre, todos nós sentimos muito a sua falta. Você sabia disso? Claro que sabia, sempre soube. – nesse momento o homem sentiu que as lágrimas tinham tomado todo o seu rosto. Só então se dera conta de que estivera chorando durante toda a conversa e que já havia passado da hora de pronunciar a sentença final daquele cruel julgamento. Sem olhar para o seu interlocutor, com a cabeça baixa, sussurrou quase que para si mesmo:

- Eu te perdoo. Sim, mas só isso e nada mais. Você não esperava mesmo ouvir um eu te amo, não é mesmo? – erguendo a cabeça, o homem botou sua mão na testa daquele resto humano que definhava na cama, deu-lhe um rápido beijo na bochecha esquerda e dirigiu-se para a saída.

Finalmente a prisão de escuridão estava desfeita.

R.C

segunda-feira, 7 de maio de 2012

A reunião.

Naquele dia tinham se reunido para votar que nada seria votado. Sentia-se como um jacobino em um daqueles comitês que faziam questão de votar os mais escrotos pormenores da revolução, desde a cor das togas usadas pelos juízes nos tribunais, passando pelo melhor formato das lâminas que fatiariam os contrarrevolucionários sediciosos e, por fim, quando não havia mais nada a ser votado, votavam que não havia mais nada a decidir: - Pelo menos o que os franceses estavam fazendo era algo sem nenhum precedente na história universal! Pensava consigo mesmo enquanto observava todos aqueles rostos que se distanciavam na medida em que se perdia em suas próprias lamentações: - Isso aqui é uma grande palhaçada, isso sim! Coisa de quem supervaloriza a democracia, a vontade da maioria, depois de ter vivido uns bons vinte anos comendo o pão que o capeta amassou.

Com o espírito meio distante do que estava se passando ali, continuava a ignorar aquela trivial conversa típica de um fim de reunião. Parecia mais interessado em entender o que de fato se passava na cabeça daquelas pessoas: - Será que ninguém percebe que isso é uma banalização da própria ideia de liberdade de escolha? Foi obrigado a parar por um instante ao ouvir um dos membros de um grupo mais à esquerda fazer um comentário irônico sobre a estagnação do valor de seus salários. Sem prestar muita atenção no homem de cabelos grisalhos, viu-se novamente pensando na banalidade daquela reunião: - Esses velhos, tão preocupados se a colonização do brasil foi assim ou assado, às vezes parecem se esquecer de uma história mais recente, da qual muitos deles fizeram parte e até mesmo se gabam disso! Pra quê?  Pra quê vocês queriam liberdade? Só pra poderem me tirar de casa às terças e sextas de manhã para decidirmos sobre todas as futilidades possíveis e imagináveis? 

Continuava com a cabeça fervilhando, afinal: era isso que a dimensão mais abrangente da palavra democracia significava para os seus pares na atualidade? Logo eles que (em alguns casos literalmente) quase se mataram para conquistá-la! O que haviam feito dessa conquista nos dias de hoje? Uma liberdade para se abster do poder de escolha sobre as coisas realmente importantes? Subitamente começou a vir em sua cabeça a imagem de uma criança que enjoa de um brinquedo depois de algum tempo de uso e o deixa de lado. Deteve-se nessa cena por alguns minutos, quase com deleite imaginava seus companheiros de trabalho vestindo fraldas e sacudindo um chocalho até se cansarem. É, parece que o brinquedo havia perdido a graça. Sempre perde né?

Ao voltar a si, a reunião continuava a mesma. Todos discutiam os mais variados assuntos. Chegou mesmo a ter a impressão de que o velho de cabelos grisalhos à sua esquerda havia feito a mesma reclamação de antes sobre o seu salário. E assim a reunião continuou, continua e continuará....

R.C.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

A condição humana

Uma das piores experiências da vida de um homem consiste na descoberta da sua constrangedora posição no mundo. Esse mal-estar, pode-se dizer, origina-se da ideia profundamente difundida entre nós  daquilo que é chamado por alguns de espíritos de luz, tão comum desde a época do iluminismo e transformado em parte de uma crença religiosa pelo kardecismo. Esses espíritos de luz seriam aqueles sujeitos dotados de um conhecimento transcendental e que teriam a obrigação moral de levar aqueles menos afortunados, os homens comuns, a um estado de luz superior.

É dessa situação que parte um dos grandes constrangimentos de ser humano. Seja como for, existe uma infinidade de questões relacionadas à vida que nos levam a crer na existência de algumas diferenças entre as pessoas. A própria educação impõe ao sujeito essa perspectiva ao diferente valor dos esforços de cada aluno, ao atribuir-lhes diferentes notas. Criado nessa tradição comparativa, ou competitiva, o homem - protagonista da sua própria vida - começa a perceber o mundo de diferenças que o separa das outras pessoas. Positivas ou negativas, esse conjunto de divergências entre você e o resto do mundo podem criar a ilusão de que você é uma espécie de escolhido, ou para usar a metáfora do começo, um espírito de luz que veio com o objetivo de fazer algo grande e importante.

Contudo, como a experiência demonstra com muita perspicácia, o tempo passa. Durante esse processo nada ocorre. Certamente há alguma coisa de errado ou com você ou com o mundo. Como você, senhor da sua vida, uma pessoa destacadamente melhor que as outras, nascida pra mudar o mundo, encontra-se no mesmo patamar que os outros? A tomada de consciência que se segue a essa pergunta é um golpe profundo na alma desse sujeito. Percebe-se que, se um dia houve uma luz, ela certamente não esteve com você. Normal é a palavra que melhor define esse estado de coisas, essa economia do ser que lhe remove grande parte das aspirações de grandeza outrora construídas.

Esse mal-estar - descobrir-se mais um na vasta multidão do mundo - pode ser, sem dúvida alguma, uma força que volta nosso olhar na direção do outro, ou de uma maneira positiva, qual seja, nos tornando mais humanos na medida em que nos deixa ciente de que somos constituídos de virtudes e defeitos, ou então, de uma maneira profundamente negativa, que seria uma interminável procura pelo espírito de luz - pra continuar com a mesma metáfora - no outro. Talvez tenha sido esse um dos sentidos da famosa frase de Jean-Paul Sartre: o inferno são os outros.

E quem diria que até mesmo descobrir-se humano seria algo relativo! Contudo, mesmo que relativo, tenho absoluta certeza de que esse é um processo que dura a vida toda, ou todas as suas vidas, dependendo da sua crença. Acredito que esse mal-estar, portanto, seja apenas uma pequena parte de algo perene e muito maior, que certamente contém diversos outros constrangimentos dessa ordem, e que pode ser chamado tornar-se humano.

"Humanizemo-nos" pois, toujours.

Daquele que sempre busca refúgio nas palavras,

Rafael Cunha.