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Ainda há chance?
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Pouco provável – afirmava o médico com o mesmo olhar indiferente de sempre, que
bem lhe servia tanto para as desgraças como pros bons momentos.
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Então é isso?
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Desculpe, mas nós fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Eu sinto muito,
mas é pouco provável que ele acorde... – algumas outras palavras vieram na
sequência, mas o homem que estava em pé ao lado do leito não prestava mais
atenção ao discurso. Nesse momento já não lhe interessava mais nada que o
médico tinha pra dizer. Conseguiu recuperar-se a tempo de ver o doutor despedir-se
com um leve tapa em suas costas e deixar o quarto com aquele mesmo olhar
indiferente.
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Agora somos só nós dois, eu sabia que você não ia conseguir fugir disso a vida
toda – falou em voz baixa observando todos os tubos e máquinas que agora
pareciam ser uma extensão de um corpo robótico. Doía bastante pensar que aquilo na cama, num coma profundo a mais
de dois meses, era o seu pai. Nem ele merecia um destino desses. Mesmo nunca
tendo sido a melhor das pessoas, ele certamente não merecia ter a alma
aprisionada naquela escuridão imensa e profunda. Ele nunca havia feito questão
de ser muito “humano” mesmo, mas a imagem dele deitado naquela cama, ligado aos tubos e às máquinas era a
descrição mais cruel daquilo a que toda escola de Frankfurt chamou de reificação.
Subitamente
a expressão do homem ao lado da cama mudou. Ele havia lembrado o que precisava
fazer antes que fosse tarde demais, afinal, por quanto tempo alguém será capaz
de aguentar imerso na mais profunda escuridão? O que fora tristeza até dois
minutos antes, dava espaço agora a uma profunda resignação. Falava para si mesmo:
- Nós dois precisamos disso – agora bastava encontrar a melhor forma de abordar
aquele assunto delicado com o homem que definhava na cama.
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Você sempre teve medo disso, né? – a pergunta
era feita num tom de indiferença tão perfeito que daria inveja ao médico, caso
ele estivesse lá – Você nunca quis realmente estar com ninguém, não é? Eu
gostaria de saber como é viver como se nada fosse maior do que nós mesmos, é
uma pena você não poder tirar esse tubo da sua boca pra me falar como é, ou
melhor, como foi. Pensando bem, foi um castigo bem cruel deixarem uma pessoa
que sempre se sentiu livre pra fugir de todas as responsabilidades, presa
dentro do próprio corpo. Parece que existe limite pra tudo, né? – nesse momento
a expressão do homem assumia um ar de confiança e as palavras pareciam estar
fluindo mais facilmente do que no começo, agora era só uma questão de tempo
para chegarem aonde queria.
–
Às vezes eu fico pensando comigo se algum dia da sua vida solitária você foi
feliz, quer dizer, o que eu fico pensando é se alguém é tão autossuficiente;
não, não acho que essa seja a palavra correta, alguém se “baste tanto” que
consiga ser feliz, nem por um segundo que seja, sozinho. Você só era capaz de
ver o lado ruim das relações entre as pessoas, e o pior é que não era nem o lado
ruim pros dois envolvidos, mas pra você, Você, Você, VOCÊ! – as últimas
palavras foram pronunciadas num tom de voz um pouco mais agudo que o normal,
sua face estava levemente rosada, o que deixava transparecer um nervosismo
evidente.
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Talvez devêssemos ter tido essa conversa antes, talvez não. Não sei se você me
ouviria, não sei se me ouve. Tudo o que eu sei é que eu precisava te dizer tudo isso. Que você perdeu muito não se envolvendo
comigo, com todos nós, homens e mulheres ávidos por amar e sermos amados. Vou
sentir sua falta, sem dúvida, mas tenho certeza de que isso não será muito
diferente do que tem sido. Todo esse tempo, enquanto você era livre, todos nós
sentimos muito a sua falta. Você sabia disso? Claro que sabia, sempre soube. –
nesse momento o homem sentiu que as lágrimas tinham tomado todo o seu rosto. Só
então se dera conta de que estivera chorando durante toda a conversa e que já
havia passado da hora de pronunciar a sentença final daquele cruel julgamento.
Sem olhar para o seu interlocutor, com a cabeça baixa, sussurrou quase que para
si mesmo:
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Eu te perdoo. Sim, mas só isso e nada mais. Você não esperava mesmo ouvir um eu te amo, não é mesmo? – erguendo a
cabeça, o homem botou sua mão na testa daquele resto humano que definhava na
cama, deu-lhe um rápido beijo na bochecha esquerda e dirigiu-se para a saída.
Finalmente
a prisão de escuridão estava desfeita.
R.C